Mecanismos de remissão do HIV: entenda!

Avanços em 40 anos melhoram qualidade de vida de pacientes, embora ainda seja difĂ­cil prever a cura.

Teste rápido do HIV. | Reprodução

Teste rápido do HIV. | Reprodução

No Ășltimo ano, a notĂ­cia de um sexto caso de remissão do HIV (vĂ­rus da imunodeficiĂȘncia humana) no mundo trouxe esperança para pacientes e mĂ©dicos, mas tambĂ©m suscitou dĂșvidas sobre os riscos envolvidos no procedimento.

Isto porque, assim como nos cinco casos anteriores, a remissão do vĂ­rus causador da Aids ocorreu depois de um transplante de medula óssea para tratamento de um câncer sanguĂ­neo. Ao receber a medula óssea de um doador, o paciente conseguiu produzir novas cĂ©lulas imunológicas livres do vĂ­rus, confirmado mais de um ano após o anĂșncio da remissão.

Vale notar que remissão Ă© quando não hĂĄ mais o foco do vĂ­rus no organismo, enquanto a cura Ă© quando a remissão permanece por cinco anos após a terapia.

Mas e o que acontece com portadores do vĂ­rus que não tĂȘm câncer de sangue? Estamos ainda distantes de uma cura para o HIV?

Segundo o virologista espanhol Asier Saez-Cirion, pesquisador do Instituto Pasteur, na França, Ă© importante ressaltar que existem diversos casos de pacientes com nĂ­veis considerados indetectĂĄveis do HIV, e os estudos sobre esses casos podem ajudar a chegar mais próximo da tão esperada cura.

"Os casos de remissão após transplante são espetaculares, mas temos tambĂ©m remissão em pacientes que ficam meses sem o tratamento antirretroviral e permanecem indetectĂĄveis por anos. HĂĄ centenas de casos assim, e estamos investigando quais são suas caracterĂ­sticas para compreender melhor a remissão do vĂ­rus", disse ele, em entrevista à Folha de S.Paulo no final de novembro a partir de seu laboratório em Paris.

Uma das linhas de pesquisa em andamento no Pasteur Ă© de pessoas que vivem anos com o HIV indetectĂĄvel sem necessidade de tratamento. "Comparamos os trĂȘs grupos de remissão em um ensaio clĂ­nico: aqueles que receberam transplante de medula óssea, indivĂ­duos que naturalmente controlam a infecção [por HIV] e finalmente pessoas que conseguem manter o vĂ­rus indetectĂĄvel anos após a interrupção do tratamento. E ainda estamos tentando entender os mecanismos por trĂĄs do controle natural da infecção", disse, completando que o estudo ainda estĂĄ em andamento.

Os pacientes que recebem transplante de medula tĂȘm, em geral, uma vantagem porque não só eles eliminam todas as cĂ©lulas infectadas do organismo como tambĂ©m impedem a infecção de novas cĂ©lulas, caso algumas cópias de vĂ­rus estejam dormentes em cĂ©lulas e não possam ter sido eliminadas.

Isso ocorreu em 5 dos 6 casos porque os doadores carregavam uma mutação conhecida como delta 32 do gene CCR5, que impede a entrada do HIV nas cĂ©lulas. O gene CCR5 age como um receptor do HIV na superfĂ­cie celular, mas tal variante impede essa ligação, por isso ela acaba com a infecção.

O sexto caso não continha essa mutação -nesse caso, Ă© provĂĄvel que o transplante deu conta de eliminar todas as cĂ©lulas infectadas. Os cientistas agora esperam conseguir criar uma terapia gĂȘnica para modificar o gene nas pessoas sem a necessidade de transplante, o que poderia ampliar o acesso ao tratamento.

"Sabemos agora que as pessoas podem viver normalmente carregando essa mutação, Ă© uma boa pista de pesquisa para tentar um mĂ©todo eficaz de remissão natural", explica.

AlĂ©m dos casos envolvendo terapia gĂȘnica e transplante de medula, Saez-Cirion lembra que hĂĄ outras formas de reduzir a viremia do HIV no organismo, conseguindo alcançar um estado em que o vĂ­rus não causa doença e não pode ser passado para outros.

Um destes Ă© por meio do tratamento precoce com o coquetel antirretroviral. "Sabemos hoje tambĂ©m que quanto antes o paciente começa o tratamento antiviral, em 5% a 6% das pessoas elas se tornam controladas no restante da vida. O controle do HIV significa exatamente isso, não desenvolver, não transmitir, basicamente, não ter sinal do vĂ­rus. Então agora estamos investigando o que estes indivĂ­duos tĂȘm em comum, se hĂĄ algo neles que pode indicar uma possĂ­vel cura", disse.

A capacidade de instruir o sistema imune, em particular as cĂ©lulas conhecidas como NK (matadoras naturais), a identificar e atacar precocemente o HIV pode estar por trĂĄs desse sucesso. "Em parte destes indivĂ­duos encontramos traços genĂ©ticos associados à instrução das cĂ©lulas matadoras, e agora estamos desenvolvendo um ensaio clĂ­nico para comprovar essa associação. Se isso for verdade, então serĂĄ possĂ­vel pensar em terapias-alvo para ajudar o sistema imune de pessoas que não controlam o vĂ­rus a combatĂȘ-lo de maneira mais eficaz", afirma.

Uma outra frente de estudo Ă© o uso de cĂ©lulas CAR-T, que são cĂ©lulas do sistema imune modificadas geneticamente fora do corpo e depois reintroduzidas para atacar o invasor.

O pesquisador afirma que nos Ășltimos 40 anos, porĂ©m, o conhecimento e tratamento de HIV/Aids evoluĂ­ram muito, principalmente aumentando a sobrevida dos pacientes. Terapias gĂȘnicas, imunoterapia, transplante de medula óssea, drogas antirretrovirais e atĂ© CAR-T são formas de combate ao vĂ­rus durante ou após a infecção inicial. Existem tambĂ©m terapias que ajudam a impedir a infecção, como a PrEP (profilaxia prĂ©-exposição).

JĂĄ as vacinas anti-HIV estão ainda distantes, lembra o virologista, muito por causa da complexidade do vĂ­rus, uma vez que um mesmo indivĂ­duo pode carregar dezenas de variantes distintas do invasor. Como as vacinas tĂȘm em sua formulação partes do vĂ­rus ou o vĂ­rus inteiro inativado, as diferentes cópias do vĂ­rus no organismo conseguiriam escapar da proteção. "HĂĄ alguns grupos de pesquisa investigando vacinas de mRNA que induzem resposta protetora por anticorpos neutralizantes, mas eles são muito raros, e mais complicados."